domingo, 27 de janeiro de 2008

02 - CARNAVAL E CULTURA POPULAR.

O termo cultura é, por natureza, polêmico e multívoco, segundo conceitua o professor Carlos Nogueira, da Universidade Nova de Lisboa, durante palestra realizada por conta da 6ª Conferência Brasileira de Folkcomunicação, realizada em abril de 2002, no SESC Mineiro de Grussai, interior de São João da Barra, numa realização do Curso de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia de Campos.
Mas, pelo senso comum, pode-se definir o carnaval como a mais legítima expressão da arte e da cultura popular, porque reúne todos os elementos lúdicos durante os três dias previstos no calendário momesco, destacando-se a entronização dos ingredientes oriundos das relações sociais, como os mitos, lendas, valores culinários, ditos jocosos, brincadeiras, versejares, cantigas e o uso da língua como marca das tradições históricas. O “Dicionário Filosófico Abreviado” (1950, p. 50), define o verbete cultura como:

Conjunto dos valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história. A cultura é um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica. (...) Em um sentido mais restrito, compreende-se, sob o termo de cultura, o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade, que nascem e se desenvolvem à base do modo de produção dos bens materiais historicamente determinado.

REALE (1996, p. 45), ensina que a palavra está vinculada a cada pessoa, indicando o seu acervo de conhecimentos e de convicções consubstanciadas “nas suas experiências e condicionadas as suas atitudes ou ao seu comportamento como ser situado na sociedade e no mundo”.
SIGRIST (2000, p. 25), sintetiza, caminhando pelo mesmo eito de deduções, que falar sobre cultura é no mínimo empreender uma discussão sem fim, pois uma compreensão exata do seu significado necessitaria de uma compreensão da própria natureza humana. E define cultura como “a expressão da forma de ser/viver da sociedade, (...) porque o homem é um ser contactante. Ele não vive só e tem a necessidade de relacionar-se com o outro (pessoas, objetos...)”.
SOARES (2004, p. ), separa as definições culturais para que sejam entendíveis. Salienta, explicando, a existência da cultura por imanência – aquela que vem na pessoa por herança de seu meio social – e que independe de outros valores apreendidos nas escolas. E acrescenta a cultura enquanto processo social, no qual se encontram os costumes, a moral e a ética; a cultura acadêmica, entendida como o trabalho pedagógico do ensino, pesquisa e extensão e a denominada cultura clássica e/ou erudita, como resultado de olhares sofisticados sobre as coisas.
A partir dos pressupostos antropológicos, o autor apresenta e explica a cultura de raiz e popular; a cultura de massa e popular e a cultura clássica e/ou erudita. Especificamente sobre a raiz, ele salienta:

A cultura de raiz é, por definição, aquela plasmada nas áreas de produção capitalista. No caso do norte fluminense, temos uma cultura originária das atividades canavieiras, cafeeiras e pastoris. A de massa é originária das franjas sociais dos centros urbanos, com forte influência dos meios de comunicação social (...).

Podemos entender, então que a cultura popular faz parte do processo social, por onde permeiam os costumes, a moral e a ética, sem abandonar a idéia de que o homem é o resultado de sua ancestralidade e, desse modo, obedece a alguns princípios de conhecimentos da imanência. Assim, ele conclui que a cultura (com seus traços) tem características locais, regionais e nacionais, ainda mais no Brasil, que tem dimensões continentais e onde há uma grande diversidade cultural.
Também o escritor Roberto Benjamin, presidente da Comissão Brasileira do Folclore, vê a cultura popular como “a similaridade de traços e características comuns à comunidade”. Traços esses que a pesquisadora Elizabeth Moreira apud Benjamin (2001, p.113), numa comunicação feita sobre as carrancas do Rio São Francisco na I FOLKCOM, (São Bernardo do Campo, 1998) considera que as culturas populares são apropriadas para a construção dos ícones da identidade regional e, ainda, para fins de marketing cultural.
É evidente que, ao longo do tempo, a cultura, de um modo geral, foi deixando marcas, ícones, signos e símbolos. E o homem passou a cultivar lendas e a criar mitos diante das circunstâncias e dos fatos vividos. Com o objetivo de estudar esses fatos, o arqueólogo inglês William John Thomas criou, em 22 de agosto de 1846, a palavra folclore (folk = povo; lore = conhecimento, saber), cujo objetivo era/é explicar que o homem, como um ser social, transmite o seu conhecimento para as suas gerações e para todos aqueles que passam a conhecer e a conviver com essas diferentes formas culturais.
No Brasil vimos que Edson Carneiro, segundo Luiz Beltrão, citado pelo professor José Marques de Melo -, foi o primeiro a mostrar que o folclore não era um corpo orgânico e mumificado, mas um fenômeno social vivo, dinâmico, em constante transformação, “dialeticamente sendo e não sendo um fenômeno ao mesmo tempo”.
Ao defender a sua tese de doutorado em 1967, “Folkcomunicação; um estudo dos agentes e dos meios populares da informação de fatos e expressão de idéias”, Luiz Beltrão parte desse princípio e cria a palavra folkcomunicação que, em outras palavras:

(...) é por natureza e estrutura, um processo artesanal e horizontal, semelhante em essência aos tipos de comunicação interpessoal já que suas mensagens são elaboradas, codificadas e transmitidas em linguagens e canais familiares à audiência, por sua vez conhecida psicológica e vivencialmente pelo comunicador (...).

Hoje a folkcomunicação se insere no contexto das propostas curriculares dos meios acadêmicos e uma gama de professores, mestres, doutores e até estudantes universitários têm desenvolvido trabalhos, com o objetivo de buscar as referências e as mensagens subliminares que estão por trás de cada evento cultural e folclórico no país, como as festas religiosas, o carnaval, o maracatu, o boi-bumbá, etc.
SCHIMIDT (2000, p. 89) conta que “nas festas carnavalescas há a suspensão temporária da hierarquia da cotidianidade. Faz-se uma paródia a ela, brinca-se, joga-se, inverte-se (...)”, situando que as circunstâncias lúdicas estão muito próximas da religiosidade. Tanto que ela mostra que também “nas festas religiosas, como a de São Benedito, a hierarquia é reproduzida em sua forma de organização, nas escolhas dos reis, da comissão, nas alas da procissão (...)”.
Compreendemos que o estudo das festas não pode ser feito de forma estanque sem que façamos uma correlação delas com a vida quotidiana, as suas rotinas e, também, com o mundo do trabalho. A festa faz parte do lazer, no qual “as classes populares ingressam de forma intensa quando passam a ter direito ao ócio, privilégio que era desfrutado apenas pelas classes mais abastadas da sociedade”.
O fato é que o carnaval - por ser uma festa pagã - também é tido pelo povo como um festejo da desordem. Melo em seu artigo “As Festas Populares como Processos Comunicacionais: Roteiro para o seu inventário, no Brasil, no limiar do século XXI”, referencia uma definição dada por Roberto Da Matta sobre o carnaval e as festas:

Penso que o carnaval é basicamente uma inversão do mundo. (...) Nele, conforme sabemos, trocamos a noite pelo dia, ou, o que é ainda mais inverossímil: fazemos uma noite em pleno dia, substituindo movimentos da rotina diária pela dança e pelas harmonias dos movimentos coletivos que desfilam num conjunto ritmado, como uma coletividade indestrutível e corporificada na música e no canto. (...) Carnaval, pois, é uma inversão porque é competição numa sociedade marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que permite trocar efetivamente de posição social. É exibição numa ordem social marcada pelo falso recato de “quem conhece o seu lugar” - algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações.

Desse modo, numa sociedade marcada pela hierarquia e pela competição, o carnaval apresenta-se como uma inversão de valores. E é movimento numa sociedade em que tem horror à mobilidade, principalmente a que permite trocar efetivamente de posição social. Mas o carnaval também é exibição numa ordem social marcada pelo falso recato.
Ao analisar a forma como a mídia divulga e se apropria das festas populares, SCHIMIDT (op.cit, p.31), explica que,

Os meios de comunicação, a publicidade e o design criam terceiras culturas, ou ainda, criam novas formas de organização da festa a partir dos códigos primários. O fato de transforma-la em um espetáculo a fim de atender um mercado com um público mais amplo não significa que a participação da população local foi eliminada. A negociação do ritual representa uma nova semântica para atender às necessidades de uma sociedade globalizada, mas sem perder a ligação com as locais. A mudança no ritual não significa a resignação da comunidade local, pois seria resignar-se a um cotidiano sem movimento, mas pode levar à redescoberta da cultura local, como já ocorre, situando-o em uma hierarquia cultural global (...).

O fato de os carnavalescos campistas fazerem, nos últimos anos, alusões a políticos com a intenção de lucratividade e de puxa-saquismo, em detrimento da escolha de temas históricos, cuja fundamentação seria muito mais pedagógica, não anula o entendimento científico sobre o tema. Muito pelo contrário, até consubstancia a intencionalidade dos grupos carnavalescos que, elogiando os políticos, buscam não só os recursos para colocarem seus blocos na rua, mas também uma forma de conseguirem as melhores notas dos jurados nos desfiles promovidos pelas autoridades homenageadas.

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